De marco cultural a vazio urbano: o que podemos aprender sobre a história dos cinemas de rua

A ocupação territorial responde a uma série de fatores e é a partir do desenvolvimento econômico e da distribuição de renda, trabalho e serviços no território que vemos cidades crescerem e se espalharem. Bairros e regiões vão sendo transformadas pouco a pouco, como resposta aos modelos econômicos atuais. Essa lógica cria vazios urbanos em forma de construções completas, dotadas de toda infraestrutura, e mesmo assim desocupadas ou subutilizadas. A trajetória dos centros antigos e dos cinemas de rua ilustra essa lógica e nos faz refletir sobre como lidar com esses desafios da cidade contemporânea. 

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Entre as décadas de 1900 e 1930, os cinemas de rua começaram a ser inaugurados nas cidades brasileiras, como a primeira sala de cinema de Belo Horizonte no Teatro Paris, de 1906, e o Cine Art Palácio em São Paulo, de 1936. Territorialmente esses espaços eram localizados nos centros das cidades, em terrenos valorizados e apresentavam uma arquitetura imponente. Existindo nas capitais e também no interior, esses espaços de encontro e de socialização tiveram seu auge durante as décadas de 1930 e 1960.  

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Cine Marrocos, São Paulo. Image © Alice Brill Czapski Via Instituto Moreira Salles

Seguindo a mesma toada dos antigos teatros, os cinemas de rua concentravam as pessoas e movimentavam as ruas, sendo uma das principais atividades de lazer da época e definindo territorialidades. Implantados próximos uns dos outros, a grande concentração de cinemas e de outros serviços relacionados a essa atividade, como produtoras, bares e cafés, ganhou o nome de cinelândias, tornando-se os pólos cinematográficos das grandes cidades. Em São Paulo, por exemplo, essa atividade caracterizou por certo período avenidas centrais como São João e Ipiranga, ao mesmo tempo que, respondendo à iminente crise econômica e à desigualdade social latente, definiu também regiões como a Boca do Lixo.  

Historicamente, a Boca do Lixo tem sua origem nas décadas de 1910 e 1920 como uma famosa região degradada e ocupada por prostitutas e outros grupos marginalizados. Com a ascensão do cinema nacional, e da consequente contracultura, essa região atraiu artistas e produtoras, sendo berço de importantes produções audiovisuais nacionais, como o cinema marginal e, posteriormente, as pornochanchadas. A vivência dos cinemas de rua das cinelândias e a contracultura da Boca do Lixo se cruzavam territorialmente e conviviam, até a decadência dos cinemas, quando a degradação se expandiu por todo o centro. 

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Primeiro shopping da cidade de São Paulo, Shopping Iguatemy. Image via São Paulo em Foco

Com a chegada da televisão e do VHS e o crescimento populacional, relacionado ao consequente crescimento e espalhamento das cidades, os cinemas de rua começam a enfrentar dificuldades. A decadência teve início na década de 1970. Neste momento, cidades como São Paulo passavam por uma transformação em seu território. O centro da cidade ia se esvaziando de comércios e serviços, que migravam para outras regiões ou ainda para os recém chegados shopping centers. 

Dessa forma, os cinemas de rua se transformaram: por um lado a atividade se transportou para dentro dos shoppings centers, transformando-se na tipologia que conhecemos hoje. Por outro, os esvaziados cinemas de rua se tornaram pouco a pouco vazios urbanos. Nas cidades pequenas, muitos desses cinemas foram consumidos pelo mercado imobiliário, sendo demolidos e apagados do território. Nas grandes cidades, algumas dessas estruturas resistiram, ocupadas com cinemas pornô ou vazias e imersas em uma região central degradada. Poucos são aqueles que resistiram e se mantém como cinemas de rua – e quando isso ocorre, é geralmente a partir de investimentos públicos e privados. 

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Manifestação contra o fechamento do Cinema Belas Artes em São Paulo. Image © Fora do Eixo on VisualHunt.com

Considerando que muitos estão localizados em terrenos centrais com acesso a transporte público e infraestrutura, o resultado desse processo nos centros das cidades envolve uma série de edifícios e áreas construídas que não cumprem com sua função social. Essa lógica se expande para comércios, hotéis e todas as atividades que, em parte, foram sendo absorvidas pelos shopping centers e em parte deslocadas para outras regiões. Com um grande contingente construído e sem função social, ao mesmo tempo que observamos a necessidade de se tomar decisões mais conscientes – em termos ambientais, econômicos e sociais – sobre como e o que construir nos próximos anos, é preciso refletir sobre como incorporar esse tipo de vazio urbano ao tecido e à vida da cidade atual.  

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Cineroleum / Assemble. Image Cortesia de Assemble

Dessa forma, é importante que consigamos entender cada vez mais a arquitetura como ferramenta de transformação espacial que responde às demandas da sociedade, o que não implica em trabalhar a partir do inexistente, mas sim, do pré-existente, como é o caso de projetos como Cineroleum na Inglaterra, projetado pelo Assemble, que transforma postos de gasolina em cinemas de rua, ou ainda o Cinema da Praça, do Arquipélago Arquitetos, e o Eletroteatro Stanislavsky, deWowhaus, que restauram antigos cinemas de rua.

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Eletroteatro Stanislavsky / Wowhaus. Image © Ilya Ivanov

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Sobre este autor
Cita: Giovana Martino. "De marco cultural a vazio urbano: o que podemos aprender sobre a história dos cinemas de rua" 21 Nov 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/971074/de-marco-cultural-a-vazio-urbano-o-que-podemos-aprender-sobre-a-historia-dos-cinemas-de-rua> ISSN 0719-8906

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